Em condições dramáticas — sem estrutura ou dinheiro suficiente — o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) está tendo que lidar hoje com a maior leva de refugiados e pessoas deslocadas dentro de seus próprios países desde a Segunda Guerra Mundial: 51,2 milhões. A intensificação de conflitos na Síria, no Iraque, na Ucrânia e na República Centro-Africana, somada a antigas crises não resolvidas, como na Colômbia e na Palestina, fizeram explodir o número total de pessoas forçadas a deixar suas casas ao redor do mundo.
E isso acontece num momento particularmente delicado, quando países que tradicionalmente ajudam, como os europeus, estão em crise e fechando a torneira do financiamento. António Guterres, do Acnur, soou o alarme: “Estamos vendo os custos imensos de guerras que não acabam, dos fracassos em resolver ou prevenir conflitos. A paz hoje está perigosamente em déficit. Humanitários podem ajudar como paliativos, mas soluções políticas são vitais”.
A Síria pesou forte na balança: os sírios são a maior parte dos 6 milhões de novos refugiados em apenas um ano — de 2012 a 2013. No final do ano passado, 2,5 milhões haviam escapado para países vizinhos, como Líbano, Turquia, Iraque e Jordânia, enquanto 6,5 milhões abandonaram as casas e se deslocaram dentro do país, para fugir dos bombardeios.
O drama dos refugiados não para no cruzamento de fronteiras: o Líbano tem atualmente 1,1 milhão de refugiados sírios, segundo Dana Sleiman, porta-voz local do Acnur. Para um país de pouco mais de 4 milhões de habitantes, foi a gota d’água que fez transbordar o copo:
“O impacto é dramático para o país, economicamente, mas também em todos os níveis. A tragédia é indescritível. Os refugiados estão espalhados em 1.600 lugares. Muitos têm que pagar aluguel para dormir em locais não adequados, até em armazéns. Subsidiamos aluguéis quando podemos, porque eles não têm como pagar”, disse.
Sem contar o estado em que milhares de crianças chegam no Líbano: “Muitas delas não conseguem falar durante meses, não podem ouvir sons e tapam os ouvidos. O trauma é imenso”, conta Sleiman.
Ela explica que uma nova tragédia ainda está por vir: das 400 mil crianças sírias refugiadas, 90 mil conseguiram vaga em escolas libanesas, que estão lotadas. “Estamos lidando com uma geração perdida. Há muitas crianças que não sabem ler, nem escrever. A comunidade internacional tem que prestar atenção para o problema”.
Dinheiro
A isso tudo, soma-se a falta de dinheiro. Em dezembro de 2013, o Acnur pediu aos doadores US$ 1,89 bilhão para financiar a ajuda aos refugiados no Líbano. Hoje, seis meses depois, só receberam 23% dos recursos solicitados. Segundo Sleiman, por conta disso, o dinheiro é utilizado nos casos mais desesperadores.
E se o Acnur enfrenta dificuldade em levantar fundos para refugiados da Síria, que estão sob os holofotes da comunidade internacional, nos conflitos da África, como na República Centro-Africana (RCA) ou no Sul do Sudão, o drama é ainda pior. A violência intercomunitária e religiosa, que começou em dezembro de 2012 na RCA, provocou uma leva de 226 mil refugiados aos países vizinhos. Só o Chade recebeu 14 mil refugiados desde janeiro.
O caso mais impressionante foi de um grupo de 610 refugiados da República Centro-Africana que caminhou durante três meses até o Chade, usando, sobretudo, florestas para escapar da perseguição de milícias armadas. A maioria (52%) era de mulheres e crianças com menos de 5 anos (27%). Mais de 100 teriam morrido no caminho: alguns em emboscadas, outros de fome, doença ou cansaço.
Moussa, um dos sobreviventes, contou seu calvário ao Acnur. “Não tínhamos nada para comer. Comíamos apenas inhame, folhas de árvore. Por isso, muitos de nós caíram doentes. Alguns morreram apenas por cansaço, doença e fome”, recordou ele.
Sem falar no estado traumático em que chegam nos países vizinhos. Nos depoimentos que o Acnur colheu, há relatos de crianças mortas a golpe de machetes, como em Ruanda, ou de pessoas queimadas vivas.
“Os refugiados estão chegando em condições terríveis e difíceis. Deixaram para trás tudo o que tinham. Famílias estão divididas”, contou ao ‘Globo’ Mamadou Dian Balde, vice-representante do Acnur no Chade.
Balde revelou que, ainda pior do que no Líbano, o dinheiro dos doadores para o Chade está chegando a conta-gotas: apenas 12% do que é necessário. Segundo ele, a crise econômica na Europa, por exemplo, está tornando os doadores menos generosos.
Afegãos, sírios e somalis representam, hoje, mais da metade do total de refugiados no mundo. A esmagadora maioria (86%) é acolhida por países em desenvolvimento. Paquistão, Irã e Líbano são os que mais acolhem. O número de pessoas que tiveram que se deslocar dentro de seus países para fugir de conflitos também bateu recorde: 33,3 milhões em 2013, o que representa 7,6 milhões a mais que em 2012. A Colômbia é um dos países com o maior número de deslocados no mundo: 5,3 milhões.
“Atualmente, há tantas pessoas deslocadas quanto a população total de países como Colômbia, Espanha, África do Sul e Coreia do Sul”, comparou Guterres, para dar uma ideia da dimensão do fenômeno.
Além do aumento considerável no número de deslocados em 2013, 1,1 milhão de pessoas pediram asilo político a países ricos, como a Alemanha. Destas, 25.300 eram crianças desacompanhadas dos pais — um recorde, segundo o Acnur. No total, 16,7 milhões de pessoas escolheram o caminho do exílio, maior número desde 2001.
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